Em 1998, um remédio chegava ao Brasil prometendo transformar crianças com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) em serzinhos mais calmos e atentos, que aprendessem mais e melhor. Dezessete anos depois, o metilfenidato, vendido com os nomes comerciais de Ritalina e Concerta, já ocupa o posto de psicoestimulante sintético mais consumido no país, de acordo com boletim da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Entre 2009 e 2011, Salvador foi a capital brasileira que teve o maior aumento no uso do medicamento - exatos 6.295,71%. Com a popularização da droga, também cresceu o número de pessoas contrárias à medicalização do ensino. Lygia Viégas, 41, doutora em psicologia escolar e professora da Faculdade de Educação da Ufba, é uma delas. De modo radical, a psicóloga questiona não só a efetividade do remédio, mas a própria existência do TDAH. "A gente fica naquela situação difícil de ter que provar que não existe o que nunca ninguém provou que existia", provoca. Para trazer mais gente a esse lado do front, ela organiza anualmente em Salvador um seminário internacional sobre o tema. Este ano, o evento acontece no começo de setembro. Em entrevista à Muito, ela fala sobre a necessidade urgente de mudar a escola antes de remediar os meninos que estão nela. "A gente vai ter que pensar em outras estratégias, como arte, brincadeiras. Contra o tarja preta, precisamos de uma sociedade tarja branca".
Houve um crescimento de quase 800% no uso de metilfenidato (vendido pelos nomes comerciais de Ritalina e Concerta) no Brasil entre 2003 e 2012. O que explica esse aumento tão expressivo?
Toda indústria produz seu produto-fim e também tem, como uma das suas finalidades, produzir consumidores. Existe um marketing muito forte das indústrias farmacêuticas para nos convencer de que a gente precisa tomar vitamina todo dia para conseguir trabalhar, de que a gente precisa tomar um anti-ácido antes e outro depois da balada, porque certamente a gente vai se exceder... Geralmente, a propaganda do medicamento termina dizendo: se o sintoma persistir, procure um médico. Ou seja, há um estímulo à automedicação. Você só vai procurar um médico depois, no caso de um sintoma persistir.
Mas no caso da Ritalina, ao menos teoricamente, é preciso ter receita médica.
Sim, isso nem é inteiramente verdadeiro, mas o que eu quero dizer é que, além desse elemento da indústria, há um outro que precisa ser considerado, que é o contexto social que estamos vivendo: a gente tem sido cobrado a estar produzindo o tempo todo, sem angústia, sem sofrimento, sem tristeza, sem distração. Isso tudo vai reforçar a ideia de que se o menino não está se comportando como a escola espera, a gente dá um remédio para ele, para pôr essa máquina para funcionar. Na outra ponta, tem o professor, que também está consumindo clonazepam (Rivotril) de uma maneira assustadora. Há essa promessa de que o medicamento é uma fórmula mágica para a gente dar conta de ser feliz, produtivo e atento o tempo inteiro. É uma leitura patologizante da vida. Existem outras maneiras de entender esse mesmo fenômeno e há outras estratégias para lidar com a mesma situação. O professor tem sido sobrecarregado, com salas de aula superlotadas e salários que não correspondem à importância da sua função. Além disso, o material pedagógico não é atrativo para crianças que estão antenadas na internet, que assistem a vídeos, que produzem vídeos! Temos uma criança digital numa escola analógica. Essa escola ainda quer que as crianças fiquem sentadas, sem conversar, sem pôr boné, só copiando. A cópia é uma atividade sem sentido. O material, hoje, está disponível na internet. É só baixar e pronto. Sou professora universitária e quando peço um trabalho, meus alunos ainda copiam do Wikipédia! Como vou cobrar que ele não faça isso se em toda sua vida escolar ele foi ensinado a copiar? Se foi dito que ele não podia inventar, criar, perguntar fora de hora... Essa é uma expressão que eu não entendo. O que é perguntar fora de hora?
A Ritalina é usada medicar pessoas diagnosticadas com Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Antes, ninguém falava nesse transtorno e hoje quase todo mundo conhece alguém que o tem. Há uma epidemia de crianças que não conseguem prestar atenção?
Essa é uma pergunta essencial. A gente vai criando novas patologias para atender a interesses conservadores. Na estrutura da psiquiatria há um manual, o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Em 2013, ele entrou na sua quinta edição - o que significa dizer que houve uma quarta, uma terceira, uma segunda, uma primeira... E houve um tempo em que ele não existia. Esse manual é construído a partir da reunião de psiquiatras, na sua grande maioria americanos, na sua grande maioria financiados pela indústria farmacêutica, o que vai produzir o que se chama de conflito de interesses. Na década de 1960, eles vão criar o DDA, o Distúrbio do Déficit de Atenção, que depois foi transformado, na década de 1980, no TDAH. Na quinta edição, eles ampliaram os critérios diagnósticos. Há um questionário para fazer a avaliação desse transtorno... Você já viu? Você tem [a doença], não tem? (Risos)
Me identifiquei um pouco... Deixa de prestar atenção a detalhes ou comete erros por descuido; dificuldade de organizar tarefas e atividades; perde coisas necessárias; facilmente distraído por estímulos externos; levanta-se ou sai do lugar em situações que se espera que fique sentado; fala em excesso...
Esse sintoma de falar excessivamente eu resolvi me tornando professora (risos). Tem um texto bem bonitinho chamado O Desbiciclético, de um autor espanhol [Emilio Ruiz Rodriguez], que conta a história de um menino, o Dani. Toda vez que ele sobe numa bicicleta, ele cai. E aí os pais levaram ele para fazer uma bateria de exames e os médicos concluem que ele é desbiciclético. O Dani não anda de bicicleta porque ele é desbiciclético, e ele é desbiciclético porque não anda de bicicleta. E aí, para que colocar rodinha auxiliar, capacete, para que contar que contar que seus pais também caíram? A gente vem produzindo análises muito parecidas com essa nos processos de escolarização.
O TDAH é um distúrbio palpável bioquimicamente ou neurologicamente?
O TDAH é medido num nível comportamental, de observação. Então é muito sério, né, porque eles dizem que é um transtorno neurológico, de origem biológica, genética, e não conseguem comprovar que seja assim. E aí a gente fica naquela situação difícil de ter que provar que não existe o que nunca ninguém provou que existia. Eles tomam isso como um fato, entram na escola tendo isso como um fato, fazem uma avaliação das crianças tomando isso como um fato. E aí dizem: nessa sala de aula, tantas crianças são hiperativas. Na bula da Ritalina está dizendo para suspender o uso nos finais de semana e nas férias escolares. Parece piada, né! Que raio de doença é essa que nos fins de semana e nas férias escolares não precisa ser tratada? Seria a mesma coisa de dizer para um diabético que no fim de semana ele pode comer pudim. Então fica muito claro que a Ritalina não está medicando uma coisa do corpo da criança. É para atender à finalidade de uma escola funcionar em uma certa dinâmica. Tem um psiquiatra carioca, Rossano Cabral Lima, que pegou esses critérios de diagnóstico do TDAH e falou: tá, se isso é uma criança doente, uma criança saudável é o contrário disso. Então vamos ver qual é o padrão de saudável que esse questionário propõe: é uma criança que fala pouco, que espera sua vez, que fica sentada, que não se levanta, que não corre, que não pula, que presta atenção no que falam para ela, que responde sempre que perguntam alguma coisa para ela, que não se distrai. Não existe criança assim. É uma não-criança. Ou uma criança muito chata.
Ao mesmo tempo, a gente ouve relatos de famílias que viviam angustiadas com o baixo desempenho dos filhos na escola e, com a medicação, eles melhoram.
O que eu vejo são depoimentos que anunciam um sentimento de liberdade quando os pais tomam conhecimento de que não há consenso em torno desse tema. É estranho que haja algumas doenças que sejam comemoradas pelas pessoas... Quando a gente encontra pais que dizem: 'Finalmente descobri que o meu filho é um doente', que lugar essa doença está ocupando dentro dessa estrutura familiar, escolar, social? A gente precisa fazer uma transformação na estrutura. Os pais também são muito cobrados. 'Seu filho tem que ficar quieto, seu filho tem que ficar quieto, seu filho tem que ficar quieto', então vamos aquietar o menino. O medicamento acaba vindo como uma estratégia, mas a gente está ultrapassando de forma assombrosa o limite do razoável, há muito tempo. Uma doença neurológica, em termos estatísticos, nunca é medica em porcentagem. É sempre um pra um milhão, um pra mil. Do contrário, seria uma degeneração da espécie humana! E o que acontece que toda sala de aula tem três, quatro crianças tomando medicamentos para ficarem caladas?
Qual é o papel da escola nesse processo de medicalização das crianças? O TDAH está muito vinculado a um comportamento apresentado na sala de aula, não?
A escola é uma instituição de massa. Ela não dá conta de educar, formar e acompanhar todas as crianças na sua singularidade. A professora está numa sala de 40 alunos e trabalha ali com o aluno médio. Ela espera que todo mundo fique numa certa média de comportamento e aprendizado. Alguns escapolem dessa média... Então há essa demanda inicial dos educadores, mas a gente não pode desconsiderar as formações que a indústria farmacêutica têm feito de professores. Eles vão às escolas e ensinam os professores a detectar as crianças que teriam esse problema, para encaminhá-las ao profissional da área de saúde. Esse professor passa a ser uma via de propagação de um olhar patologizante, produtor de doenças e adoecimentos no processo de escolarização. Agora, nós não podemos deixar de considerar que o professor também está medicalizado. Outro dia li uma entrevista com uma professora de São Paulo e ela dizia: 'não conheço um professor que dá aula careta'. A droga do professor é o Rivotril. É um professor que está tendo uma dificuldade danada de ter tesão para dar aula. Eles estão pedindo socorro! Tem um autor que diz que se a gente tivesse descongelado uma pessoa morta há 100 anos ela iria estranhar o mundo inteiro, mas quando passasse na porta de uma escola, ia dizer: 'Ah, isso eu reconheço!'. A escola não se transformou. Que instituição é essa que todo mundo quer sair correndo dela? A escola precisa ser transformada para ser mais alegre. Conhecimento não é antítese da alegria. É possível aprender e sair feliz desse dia de aprendizado. Hoje, qualquer escola que você passe, a tendência é ouvir gritos. E é grito de adulto com criança. Na minha pesquisa de doutorado, fiz um levantamento e deu uma bronca a cada quatro minutos. Tem uma que acho uma delícia. Uma professora falou 'Vou passar umas continhas aqui na lousa e depois vou chamar vocês pra virem até aqui responder'. Aí um menino diz: 'Eu quero' e a professora responde: 'Só porque você pediu, não vem'. A escola é assim. E não é porque o professor é feio, bobo e chato. É porque não existem novas estratégias pedagógicas que estejam sendo disponibilizadas para esse professor. E do outro lado, as estratégias diagnósticas estão sendo disponibilizadas.
Há pesquisas que indiquem alguma melhora no aprendizado com o uso do metilfenidato?
Muito pelo contrário. Tem um relatório produzido pela Anvisa que mostra que todas as pesquisas que dizem que Ritalina funciona foram mal desenhadas metodologicamente. Além disso, há o efeito de sugestão. Toda mãe sabe um pouco desse efeito. Quando o filho chega em casa apavorado porque se machucou, ela diz toma aqui essa aguinha com açúcar, e ali junto vem o afeto, o cuidado, o abraço, e aí a criança se acalma... Tem uma médica americana, Marcia Angell, que fala o seguinte: bom, se quando eu tô com dor, eu tomo morfina e a dor passa, então dor é falta de morfina no sangue. Então, somos todos carentes de morfina.
Se estou entendendo bem, você está negando até a existência de casos extremos? Não há nenhuma criança com transtorno de atenção que deva ser medicada?
Eu, e o Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade do qual faço parte, entendemos que não há razão neste mundo que justifique usar um medicamento psiquiátrico, tarja preta, cuja eficácia a própria bula põe em suspeição, para tratar crianças de um transtorno neurológico sem comprovação científica. E aí a gente vai ter que pensar em outras estratégias: propor arte, propor brincadeira. Contra o tarja preta, precisamos de uma socidade tarja branca, que brinque. Que ponha a brincadeira no centro da vida. A experiência da coletividade, da cultura, da arte, do movimento social são espaços de produção de saúde. A gente tem que buscar na diversidade humana as variadas potencialidades das pessoas. É delicado falar nomes, mas fico pensando por exemplo num músico como Carlinhos Brown, que é um cara que é super agitado, multiinstrumentista, extremamente criativo, que coloca uma máquina inteira para girar em torno da música... O que seria dele se na infância dele tivessem dito para ele: 'isso é um PROBLEMA seu?' A gente precisa ver potência ao invés de ver doença. A dificuldade de lidar com essas características não é da criança. É do adulto.
Como você viu a decisão do governo de São Paulo de restringir, no ano passado, a distribuição na rede pública de saúde de medicamentos com metilfenidato? A Associação Brasileira de Psiquiatria criticou a medida, argumentando que a portaria dificultria o acesso ao tratamento pela população de baixa renda e interferiria no exercício da autonomia médica.
Acho que essa portaria deveria ser nacional. É resultado de muita luta nossa no Fórum. Eles criaram um protocolo, a ser preenchido pelo médico, e o médico agora vai ter que dar conta de que antes da estratégia do medicamento psiquiátrico, outras estratégias foram experimentadas com aquela criança. Isso é mais do que razoável. Porque do ponto de vista inclusive econômico, a gente vem superlotando serviços de saúde de crianças que não têm um problema de saúde e colocando na fila de espera aquelas que efetivamente precisam de um atendimento.
Quais são os efeitos já comprovados do uso a longo prazo desses medicamentos?
O primeiro aspecto que eu acho fundamental é a dependência química. E a gente sabe de muitos casos de adolescentes e jovens que usam Ritalina para fins recreativos. Se eu estiver saindo na rua com uma trouxinha de cocaína na bolsa, e a polícia me pegar, vou presa. Se eu sair na rua com uma caixinha de medicamento, tô tomando medicamento. Tem o selo de qualidade, de segurança da indústria farmacêutica.
Você falava do uso recreativo da Ritalina e há também um uso 'concurseiro' da droga. Tem quem chame a Ritalina de "pílula da inteligência".
Várias pessoas têm usado, sem pensar nos riscos. É como um doping intelectual. A Ritalina é um estimulante, você fica fissurado, né, mas é uma fissura que pode ser canalizada para os estudos como para outra bobagem qualquer. Não é algo que você controle. Não tem nenhum remédio que te faça aprender matemática.